O BARCO QUE ME DEU VOCÊ

 

            Valentina encarou aquela casa enorme de madeira ao lado do lago. Visual lindo! Mas não lindo o suficiente para apagar a aflição que sentia. Olhando ao redor pôde ver ao longe um rapaz remando um caiaque, com tanta leveza e simplicidade, aproveitando uma beleza que aquela menina se sentia incapaz de sequer apreciar.

            “Que sorte a dele, poder se divertir sem ter com o que se preocupar.”

            Começar de novo.

          Como levar essa novidade como algo simples, algo normal? Depois da separação dos pais de Valentina, tudo com certeza iria mudar. A questão não é se mudaria para melhor ou pior, não é isso! A questão é que era um recomeço, tudo novo… Tudo de novo.

           Aquela casa que fitava não era a dela, aquele lago não era dela, mas aquele pai que vinha ao seu encontro de braços abertos, esse sim era o pai dela.

       “Como ele pode simplesmente abrir os braços e sorrir, como se não estivesse estragado tudo?”. Valentina só pensava, não tinha coragem de dizer a ele a dor que sentia, nem que ele era causa de tal dor. Mas ao mesmo tempo, seu corpo, seu sorriso forçado e seu meio abraço diziam o que ela pensava.

            João percebeu que a filha não respondia ao seu abraço com a mesma intensidade. Assim,  meio sem jeito, sem saber como reagir, se afastou da filha que outrora fora sua melhor amiga, preferindo acreditar que o tempo iria quebrar o muro que agora os separava.

            Valentina reparou nos cabelos grisalhos do pai balançando no vento, o pôr-do-sol o deixava ainda mais bonito e isso a fez franzir o nariz, imaginando que não demoraria muito até ter uma “nova mãe”.

            “Como ele pôde fazer isso conosco?”

            A casa era ainda maior de perto, branca e com flores amarelas ao redor. O quarto de Valentina havia sido preparado especialmente para ela, a vista dava para o lago que não abrigava mais o remador. Pena, ter encontrado uma casa e quarto tão perfeitos no momento errado da sua vida. Pensava o quanto teria sido incrível viver aqui quando criança, longe do barulho da guitarra do vizinho que acreditava saber tocá-la.

          – O jantar vai ser servido daqui a uma hora, filha. Você deveria tirar esse tempo para desfazer as malas e descansar. Amanhã… – João interrompeu a fala quando Valentina tirou da bolsa os fones de ouvido deixando claro que não iria conversar.

             “Ela vai aceitar…” suspirou João.

             “Eu não vou aceitar.” Suspirou Valentina.

      A noite passou rápido, o silêncio daquele lugar a abraçou de uma forma aconchegante e irritante, Valentina não queria gostar daquele lugar. Antes que o pai acordasse para o café da manhã de um sábado tranquilo e começasse a falar tudo o que não foi dito no jantar silencioso do dia anterior, a menina pulou da cama e decidiu se afastar.

            A luz do amanhecer teimava em disfarçar o vento frio que gelava a ponta de seu nariz. Valentina se aproximou do lago ao ver que ali estava um pequeno barco de madeira.

             “Por que não?”

       Meio sem jeito, a garota foi até o pequeno deque, entrou no barco um tanto desordenada e o desamarrou com muita dificuldade. Parecia que alguém o amarrara com o objetivo de nunca mais tirá-lo dali e o remo que estava no deque parecia mais pesado do que deveria ser. Como aquele rapaz fez isso com tanta leveza? Valentina se esforçava para manter o barco equilibrado, mas isso também dependia do equilíbrio da menina, o que não era lá o seu forte. Valentina, no entanto, estava determinada a sair dali e passar um tempo sozinha, pensando no que estava vivendo e, de quebra, gerando um pouco de solidão no seu pai como forma de vingança.

            Com dificuldade, remou pelo lago calmo, até que em certo ponto algo bateu no seu remo e a assustou. Acordando para vida e tentando manter o equilíbrio, Valentina se atentou que os seus pés estavam molhados.

              O barco estava enchendo de água.

            Absorta em seus pensamentos, Valentina não fora capaz de ver que a água estava entrando aos poucos e com certeza por esse motivo o barco estava tão bem amarrado no deque. O desespero tomou conta da menina que agora tentava virar o barco na direção da casa branca, aquela mesma casa da qual estava tentando fugir. No entanto, parecia que o fato dela perceber que a água estava entrando só aumentou a velocidade do que estava prestes a acontecer: o barco estava a afundar.

              – Socorroooooo! – Valentina começou a gritar. – Paaaaai!

           Ele, o pai perito em aparecer em momentos onde nunca era esperado pela filha, escolheu a melhor hora para não aparecer.

            – Paaaaaaai! – a menina remava com força, na esperança de ao menos chegar mais perto da margem, já que não sabia muito bem nadar. O pânico só aumentava quando esta olhava aquela água densa que “sabe se lá” o que escondia em suas águas profundas. E o que fora aquilo que bateu no seu remo? PÂNICO!

             – Paaaaaaai!

           O barco não se movia a não ser para o fundo. Valentina toda encharcada sentiu a pressão da água a puxando junto com o barco e foi quando ela entendeu que deveria nadar para longe dele, ou seria arrastada junto. Batendo as pernas e braços de forma descoordenada, o pânico provocara em Valentina um apagão em sua memória levando até mesmo a pouca experiência que tinha em piscinas.

        A água densa entrava em sua boca, algo a tocou na perna e também no braço, aumentando o desespero. E foi aí que ele veio.

            E como ele veio!

          Sem saber que quem a abraçava por traz estava ali para ajudar, Valentina o acertou na boca com o cotovelo, o gemido de dor a deixou consciente que era uma pessoa que estava ali e voltando-se para aquele rapaz, tentou se agarrar a ele e se livrar do afogamento. Ele passou o braço ao redor do pescoço da menina e dali para frente Valentina não viu mais nada.

           Os raios de sol finalmente inundaram seus olhos fragilizados e a fizeram enrugar o rosto molhado. Foi então que Valentina viu, contra o sol, o rosto de quem salvara sua vida.

         – Hey! Você está bem? – a voz ainda parecia baixa para a menina, como em um sonho. – Olha para mim, foca em mim. Hey!

            O rapaz sacudiu o rosto de Valentina enquanto falava:

            – Moça, olha para mim.

            “Quem é você?” as palavras passeavam livres na mente da menina que ainda não conseguia responder.

             – Hey, você está bem? – a testa enrugada do rapaz deixava clara sua preocupação.

             “O que aconteceu?” Valentina ainda não se dera conta de que não estava falando.

             – FALA COMIGO! – o rapaz tinha um desespero na voz.

             – Mas eu estou falando… – Valentina tossiu água depois disso.

         – Graças a Deus… – o rapaz sentou ao lado da menina deitada, como se desmoronasse de alívio, jogou a cabeça pra traz e suspirou fundo.

            – Você ainda não me disse quem é você… – Valentina parecia realmente acreditar que falara com o rapaz todo esse tempo.

             – Estava um pouco preocupado vendo se você voltava do desmaio, não é mesmo? – disse o rapaz sorrindo. – Eu sou Pedro. Você está bem mesmo? Tive que desmaiar você para tirá-la da água. Desculpe, tive que ser agressivo ou ficaria sem nariz.

            As palavras despertaram a mente de Valentina a fazendo lembrar de tudo o que aconteceu.

            – Você pode me dizer “quê diabos” você estava fazendo no meio do lago com aquele barco furado? Olhando assim para você não dá para imaginar que você é louca.

              Valentina agora sentada olhou a casa branca de longe, irritada com o fato que ela parecia ainda mais bonita daquele ângulo.

               Pedro a encarava com curiosidade:

               – Aquela é sua casa?

               – A casa do meu pai. – Respondeu a garota friamente.

              – Então eu sou o vizinho. Não tenho o privilégio de morar tão perto do lago como ele, mas se você topar andar um pouco, posso te emprestar meu chuveiro, roupas secas e um telefone. O lago é grande demais para você dar a volta, está molhada e hoje faz frio.

               – Telefone? – Valentina o encarava intrigada.

               – Para avisar o seu pai que está bem.

               – Prefiro não falar com ele agora.

             – Percebo que estava fugindo dele. Mas o que acha que ele vai deduzir ao perceber que a filha sumiu junto com um barco estragado? Daqui uma hora isso vai ter mais policial do que você possa imaginar.

                 Percebendo que ainda não a convencera, continuou:

                 – Além disso, independente do que ele fez, sumir assim é muito cruel.

            Valentina se indignou com a última frase e pareceu não se conformar com a intromissão do rapaz:

                 – E quem você pensa que é para me dizer o que eu devo ou não devo fazer? – a agressividade voltara na garota de uma vez.

                   – O cara que te salvou?

               – Como se isso te tornasse meu dono! Você não me salvou por que é bom, não teve escolha. Se você têm toda a habilidade que precisava pra me salvar, se não o fizesse seria assassino e ninguém quer levar essa culpa, não é mesmo? Acho incrível como as pessoas são heroínas para no final serem aplaudidas, são bondosas para serem reconhecidas…

                  Pedro se levantou como se não a ouvisse mais, sacudiu a roupa ainda molhada colada em seu corpo, pegou o sapato encharcado e se afastou.

                  – E ainda por cima é um grosso, que me deixa falando sozinha. – Valentina nem ao menos se virou na direção de Pedro, mas gritou para ter certeza de que ele a ouvia.

                  – É amargura demais para uma pessoa que acabou de ter uma chance da vida. – Pedro respondeu com paciência. – Ah, e de nada. Prazer em conhecê-la.

                A calma do rapaz a deixou muda tempo o suficiente para que quando ela virasse o procurando, ele não estivesse mais ali.

               “Pra onde eu vou agora?” a menina tremia de frio. “Não posso voltar para aquela casa…”

               – Valentina. – A menina ofegava, depois de minutos procurando a trilha que o rapaz seguira. – Eu me chamo Valentina.

                  Pedro parou assustado ao ver a menina a poucos metros dele.

                  – Mudou de ideia, Valentina?

                  – Não posso voltar para aquela casa.

               – Olha, mas eu sou um herói fajuta, lembra disso? Acho que já tenho uma história boa para me vangloriar por aí. Para quê te ajudar mais? – a ironia entre os dois era palpável, Pedro não aceitaria outro desaforo.

                – Obrigada pela sua ajuda e me desculpe pela forma que falei com você. Mas não podemos nunca mais tocar no assunto do meu pai. Poderia, por favor, me ajudar com roupas secas? Posso te dar algo em troca… – Disse Valentina já arrependida, torcendo para que o que o garoto pedisse não fosse nada vulgar.

               Vou pensar em algo para você me ajudar hoje. Não falarei do seu pai sem a sua iniciativa, mas saiba que falarei com o seu pai e direi onde você está.

                  – Mas…

                  – Essa é a condição.

                  – Tudo bem. – Valentina fora vencida. – Podemos ir? Estou com muito frio.

                  Pedro finalmente sorriu, um sorriso desajeitado, e disse:

                  – Também não estou mais aguentando, vamos embora.

                Depois de lindas árvores, logo apareceu um campo e uma pequena casa ligada a um celeiro. A lareira estalava e esquentava o ambiente de forma aconchegante. Após um bom banho, Valentina encontrou em cima da cama uma camiseta branca enorme junto a uma calça de moletom que por sorte devia ser de alguém menor. Tudo naquela casa era pequeno, rústico e convidativo.

              Pedro a esperava na cozinha, também estava seco e vestido, e preparava um café. Sobre a mesa se encontrava um bolo e dois pratos.

         – Sei o que você pode fazer para me recompensar por isso… – disse o rapaz apontando para as roupas em Valentina.

               – Diga.

            – Tenho algumas peças de madeira no celeiro, preciso de ajuda para empilhá-las na caminhonete e levá-las ao centro comercial da cidade. Será que essas mãos delicadas aguentam?

                Valentina escondeu de forma instintiva as mãos que só carregaram livros:

                – Claro! Trato é trato.

              A garota olhou pra Pedro pela primeira vez. Na sua frente estava um rapaz alto, com os braços fortes e queimados de sol. Provavelmente ele era aquele garoto famoso do colégio, com todas as garotas aos seus pés. Esse pensamento fez Valentina revirar os olhos de forma involuntária, refletindo o seu cinismo quanto a caras daquele tipo.

              – O que foi agora? Bolo e café para você não é o suficiente? – Pedro a flagrara em seu cinismo enquanto colocava na mesa o café.

              – Não… – consertou Valentina. – Só estava pensando. Nada com você! Amo bolo e café.

               – Só falta um bom livro.

               – Você gosta de ler? – a garota estava realmente surpresa.

              – Por que se surpreendeu tanto com isso? – Pedro encenou um gesto com as mãos como se sentisse ofendido com o comentário. O que era verdade, já que Valentina havia assimilado que ele era só um cara popular sem cérebro, o que lhe soava muito ofensivo.

               –  Você não parece ser do tipo que gosta de ler.

          – Ah, entendi. Eu deveria então usar óculos, o cabelo mais arrumadinho, abandonar a bermuda e a regata e entrar para um bom clube do livro, certo?

          – Nem todos usam óculos… – disse Valentina arrumando os óculos invisíveis no rosto, só agora percebendo que tinha perdido no lago seus óculos de leitura favorito.

              – Então você entendeu.

              E ela havia entendido.

              – Você tem uma opinião sobre mim – continuou Pedro – mas esquece que também estou formando uma sobre você.

           – Não esqueço, só não me importo. – Disse Valentina apreciando o seu primeiro gole de café.

          – Mentira. Você parece julgar demais as pessoas sem conhecê-las, essa é minha opinião sobre você. Pode mudar? Pode. Mas no momento, essa é minha opinião.

              Antes que Valentina pudesse responder com alguma alfinetada, que por sinal não havia lhe ocorrido a mente ainda, esta foi salva por uma ligação que Pedro recebia no celular.

         – Alô… Oi Sr. João! Aqui é Pedro, somos vizinhos, te encontrei remando um dia desses, lembra? Obrigado por retornar…

            “Ah, então esse era o cara sortudo que remava ontem.”

            – Que bom que você se lembra. Então, podemos marcar sim qualquer dia… Ah é sobre isso mesmo que queria falar, o seu barco, sinto muito, mas ele afundou hoje de manhã… Sim, sua filha estava o usando de manhã… tenho certeza que é ela, Valentina, com uma cara emburrada e definitivamente ela não está dormindo ainda, está aqui em casa. Eu a trouxe para dar algumas roupas secas e… Calma, está tudo bem! Ela só ia dar um passeio, não viu que estava furado… Ela não aceitou minha ajuda como um simples ato heroico que foi – sorriu Pedro, provavelmente o pai da menina também sorrira do outro lado da linha – e quer pagar por isso, então decidiu me ajudar com algumas madeiras que preciso levar para a cidade para a venda. (…)

            Pedro informou o que fariam, como fariam e quando voltariam, como um bom e responsável garoto, mas sua habilidade de irritar Valentina só melhorou a cada palavra em que mostrava se dar tão bem com João.

       – Pelo jeito o papo estava bom. – Cinismo e uma boca cheia de bolo atacam novamente.

              – Sim. Vamos assim que terminarmos ok?

              – Ok.

          O celeiro de madeira estava lotado com mais madeira. Alguns troncos ainda inteiros provavelmente se tornariam pequenos barcos, isso era óbvio já que em um canto havia um começando a ser esculpido. Mas do outro lado haviam inúmeras tábuas empilhadas, metade do montante já lixado e pronto para algo ainda maior, um grande barco que estava no meio do celeiro.

             – Use isto, vai precisar. – Pedro entregou duas luvas enormes para as finas mãos da menina. – Talvez também precise disso – entregou-lhe um chapéu – é muito branquela.

            Começaram a levar as tábuas para a caminhonete, Valentina se responsabilizou pelas menores.

            – Por que irá vender essas tábuas? Claramente ainda não terminaram o barco. – Valentina pareceu se esquecer de toda a revolta que costumava pôr em cada palavra. Pedro também esquecera do quanto se armara contra ela:

             – Meu pai estava fazendo esse barco. Era uma grande encomenda de um dos caras ricos que mora em uma das fazendas por aqui. Mas, infelizmente ele não terá como terminar e preciso do dinheiro agora.

             “Isso soa bem egoísta. Mas tudo bem, melhor perguntar direito antes de dar outro fora.” Valentina começava a aprender com as cabeçadas que dera.

             – Parece um barco bem bonito, se deixasse seu pai terminar teriam mais dinheiro do que vendendo toda essa madeira. – Valentina tentou ser o mais casual possível, tentando não arranjar mais um conflito, estava cansada de brigar.

              – Sim, é um projeto muito lindo. Mas, meu pai faleceu há alguns meses.

              Valentina parou de repente, totalmente desarmada por aquelas palavras:

              – Eu sinto muito, Pedro.

            – Tudo bem… Doeu tanto no começo, mas agora tenho algumas preocupações que me ajudam a esquecer um pouco a dor. Tentei terminar o barco a tempo, mas o dinheiro acabou antes que eu terminasse e vou ter que abrir mão da encomenda.

           – Não tem alguma outra forma de ganhar esse dinheiro, sei lá! Parece tão errado não terminar o barco do seu pai…

        – Entendo seu ponto de vista, também penso assim. Ontem saí para remar e descobrir algum jeito de ganhar dinheiro, mas infelizmente, mesmo que eu passe numa entrevista que fiz na semana passada, o dinheiro entra no final do mês e ainda temos que comprar o que comer em casa.

           A conversa foi interrompida por um baque forte, emitido por Pedro quando ele fechou a traseira da caminhonete finalmente cheia. Ele parecia também não querer conversar, então Valentina decidiu respeitar esse momento em silêncio, no lado do carona, enquanto iam em direção a cidade.

          De vez em quando, disfarçadamente, Valentina o fitava. Pedro estava concentrado na estrada, absorto em pensamentos. Valentina imaginava o quanto não deveria ser fácil para ele abrir mão de algo que o pai estava trabalhando há tanto tempo.

           A cidade era tranquila, uma típica cidade de interior. No centro comercial, onde estavam, acontecia uma feira e muitas pessoas iam e vinham comendo os seus pastéis, crianças correndo e outras desfrutando algodão-doce. Valentina teve de admitir que era uma linda tarde de sábado.

              Pedro seguiu até o local onde se vendiam artesanatos e começou a conversar com alguns comerciantes sobre a madeira que levava na caminhonete.

           O tempo ia passando e pouco foi vendido, nem mesmo metade do que Pedro levara. No entanto, ele parecia mais animado, já que qualquer quantia seria de grande ajuda naquele momento.

             – Olá, Pedro! – uma senhora se aproximou lhe dando um forte e afetuoso abraço. Pedro retribuiu com toda simpatia que se dá a quem ama:

               – Como vai a senhora hoje? – o sorriso em seus lábios era estonteante.

             – Bem melhor agora que te vi por aqui! Quanto tempo não te vejo por esses lados… – antes que o silêncio tomasse conta da conversa, a senhora dos cabelos de neve continuou:

             – Como anda sua mãe?

          – A saúde dela está melhor, graças a Deus. Mas ainda não está boa para sair de casa… – respondeu Pedro com tristeza.

       – Ela vai melhorar! Com um filho desse ao lado, cuidando dela, quem não melhoraria? – disse apertando a bochecha de Pedro que agora sorria novamente.

             – Vou levar um doce para ela amanhã e uma geleia de amora. Ela ama geleia de amora!

                – Claro! A casa sempre estará aberta para a senhora.

             “Parece que aquele rapaz que remava, não remava tão despreocupado assim…” Pensou Valentina que sem dúvida alguma não invejava mais a “paz e a tranquilidade” de Pedro no dia anterior. Mais uma vez, havia interpretado a situação de forma errada. Além disso, Pedro era amado pelas pessoas da cidade. Muitos o conheciam e paravam para cumprimentá-lo e perguntar se estava bem e um deles até comprou madeira alegando que era para um projeto, mas no fundo Valentina sabia que ele estava só querendo ajudar. Absorta em seus pensamentos, nem ao menos viu quando a senhora se afastou após dar um beijo no rapaz.

                  – Vamos voltar, só vou comprar algo para comermos antes.

              – Não se preocupe comigo – interveio Valentina. – Não estou com um pingo de fome! Um pedaço daquele bolo que comi de manhã, no entanto, eu aceito.

             – Tudo bem! Só vou comprar pães para minha mãe então, ela vai amar com a geleia de amora amanhã.

               A volta para casa já não fora silenciosa. Com Valentina desarmada, Pedro pôde contar como não trabalhava, pois investia todo o seu tempo treinando no caiaque para as competições, como sentia falta de toda a agitação dos campeonatos e da adrenalina, mas agora estava a procura de um emprego e não poderia competir sempre. Contou sobre a depressão da sua mãe, dos ataques de pânico depois que seu pai morreu, de como ela não voltou a trabalhar. Apesar disso, Pedro estava confiante de que passaria na última entrevista que fizera e se sentia honrado em cuidar da mãe. Além do mais, amava crianças e não via a hora de começar a dar aulas de caiaque para a comunidade, como não estaria viajando tanto poderia se dedicar a esse projeto…

                – Me desculpe, Pedro. – Valentina o interrompeu de uma vez.

              – Pelo o quê especificamente? Tenho uma lista… – apesar de ser verdade, Pedro manteve a leveza da conversa e sorriu.

              – Por ter te julgado tão mal. – Valentina fitava o painel a sua frente com o olhar triste, sem ousar encará-lo. – Ontem quando eu cheguei, te vi remando no fim da tarde e invejei como você remava com tanta leveza, achei que devia estar se divertindo… Eu estava tão perdida em meu sofrimento que achei que só eu sofria e agora que conheço você…

                 – Percebeu que tem alguém com a vida mais ferrada que a sua…

             Valentina o encarou com os olhos escancarados, parte por que realmente pensava aquilo e ele estranhamente tinha lido sua mente, parte por que ela não gostaria que ele tivesse lido, já que isso soava tão rude quando falado em voz alta. No entanto, Pedro apenas sorriu e os dois gargalharam quando Valentina só pôde responder:

                – Touché!

              E depois de um silêncio esmagador, reunindo toda a força que tinha, já que não era positiva há tanto tempo, Valentina disse:

              – Tenho certeza que vai dar certo, vocês vão ficar bem. Meu pai – enrugou os olhos sabendo que era difícil usá-lo em uma referência para algo bom – costuma dizer que nós plantamos o que colhemos e é nítido, pelo tanto que as pessoas gostam de você e te querem bem, que você só tem plantado coisa boa.

             – Obrigado… Também espero. Quanto ao seu pai… – Pedro parou, medindo cada palavra e esperando por uma reação de Valentina. A menina se contorceu na cadeira, mas nada disse, pareceu se preparar para pela primeira vez ouvir algo relacionado a ela e ao pai. – Tudo tem um outro ângulo. Não sei o que aconteceu, mas sei que da mesma forma que eu não era um remador tranquilo se divertindo no lago ontem, como você imaginou…

           – Meu pai pode não ser um homem terrível que abandona a família, como eu imagino.

                – Você ainda o tem… Tentar ver ele por um ângulo diferente não vai te fazer mal. Tente conhecê-lo, ver suas manias, o que ele viveu e o que fez ser e chegar até aqui.

                – Não sei se é uma boa ideia…

             – Todo o dia quando eu faço meu café da manhã eu frito dois ovos do jeito que meu pai amava. E eu odeio ovo frito. Mas, pelo menos eu sei que eram os favoritos do meu pai, não sei muita coisa, mas sei disso.

                 – Ok. Mas sabe, meu pai é vegano.

          Os dois caíram na risada e Pedro acabou se perdendo ao tentar contornar a situação, o que o deixou ainda mais engraçado.

               O dia continuou leve, com bolo, café e um bom papo. Pedro venderia a madeira na feira de domingo e Valentina o ajudaria. Mais tarde, Valentina conheceu Giovana, mãe de Pedro. Ele a levou com carinho até a mesa para que pudesse aproveitar junto com eles, e ambos riram muito ao explicarem como se conheceram, como a “rabugenta da Valentina ficou devendo um favor”, de como o “Pedro ficou se fazendo de durão para amansar a fera”.

                Já era fim de tarde e Pedro prometera deixar Valentina em casa antes do pôr-do-sol. O rapaz esperava na caminhonete enquanto Valentina terminava de se despedir de Giovana na porta daquela aconchegante casa:

             – Valentina, foi um prazer te conhecer. Fazia tempo que eu não sentia o humor dessa casa tão leve… – Giovana sorria com os olhos cansados.

             – Fazia tempo que eu não tinha um humor tão leve! – Valentina já estava de costas indo para caminhonete quando parou, correu para Giovana e abraçou dizendo:

             – Parabéns por este filho tão bondoso e amoroso que tem. Deve ser um verdadeiro presente, uma verdadeira dádiva…

             Giovana fitou Pedro com os olhos marejados:

            – Sim, você está certa, sou abençoada de tê-lo. – Giovana entrou, e depois de muitos meses sem cozinhar, trocou a camisola e começou a preparar o bolo favorito de Pedro.

            O sol se punha no retrovisor da caminhonete:

          – Então quer dizer que o atleta quis pegar a caminhonete para me levar no vizinho? – Valentina agora disse de forma leve e descontraída.

     – Acho que você trabalhou bem hoje! Quis te poupar de quinze minutos de caminhada…

            – Sei. – Riu a garota trazendo de volta o cinismo.

          – Também o sol está se pondo e o lago é enorme, demoraríamos muito para dar a volta e eu não sou tão fã do escuro para querer voltar a pé pra casa na completa escuridão.

        O carro se aproximou da linda casa branca e ambos encontraram uma cena estranha onde João limpava o barco que havia afundado com Valentina naquela manhã. Como fora parar ali?

            Valentina refez a feição amarga que carregava a mais de um mês desde que seu pai havia saído de casa e estava prestes a sair do carro quando Pedro a puxou pelo braço:

               – Hey… – ele a encarava com doçura. – Lembre-se do novo ângulo.

         Valentina fitou aqueles olhos lindos, que deviam ter passado por tantas fases aqueles meses: lágrimas, dores, medos, inseguranças… Como eles ainda podiam ser tão doces?

                – Ok.

                Pedro segurou o rosto de Valentina com doçura e a beijou.

                “Sempre se tem um motivo para agradecer.” Pensou a garota.

             Valentina saiu do carro, ansiando pelo dia seguinte onde veria Pedro, sem nem sequer imaginar que sua noite estava longe de acabar.

          Enquanto observava a caminhonete se afastando, suspirou profundamente e tomou coragem de ir até seu pai no deque.

                 Sem tirar os olhos do barco, João continuava a limpá-lo com entrega total.

                 – Não sabia que esse barco era tão importante para você, se soubesse não o teria afundado.

                  João continuou olhando apenas para o barco.

               – Como o recuperou? O lago não deve ser tão fundo quanto eu imaginava… – e realmente não era, mas nenhum comentário fazia João responder ou fitá-la.

                Valentina já estava perdendo a paciência quando percebeu uma data gravada no barco: 14/01/2001, o ano em que nasceu.

                   – Pai, o que significa essa data? – Valentina se aproximou do barco curiosa e foi quando percebeu que seu pai escondia os olhos marejados e vermelhos de tanto chorar. A menina engoliu a seco quando percebeu que sua rebeldia devia ser o maior motivo dele estar naquele estado. É claro, isso era o que ela queria desde o começo, afetá-lo de alguma forma, mas a imaginação sempre é melhor do que a realidade quando se trata de vingança.

                    – Esse foi o dia que recebi o maior presente da minha vida.

                    – O que foi?

                   – Eu era um namorado bobo, que sabia que meu relacionamento estava prestes a acabar, mas estava apaixonado demais para isso. Então, resolvi fazer uma surpresa igual as dos filmes de sessão da tarde, uma última tentativa… – João sorriu com a lembrança, mas manteve os olhos marejados no barco enquanto limpava. – Levei minha namorada rabugenta para um piquenique no meio do lago nessa data e foi nesse dia que ela disse que eu seria pai. Então filha, esse barco é muito importante para mim, foi ele que me deu você… e na verdade é tudo o que sobrou.

                    – Se você não tivesse ido embora esse barco estúpido não seria só o que sobrou de nós.

                João enxugou as lágrimas e fitou Valentina pela primeira vez, enquanto disse contendo o choro:

                   – Filha, não existe jeito melhor de contar isso, mas prometo que farei o melhor, porque você merece a verdade.

                    – Pai, você está me assustando.

             – Há exatamente um mês atrás sua mãe me contou a verdade sobre aquele piquenique. Realmente ela iria terminar comigo aquela tarde porque estava carregando um bebê que não era meu.

                   Aquelas palavras vieram como um soco na boca do estômago de Valentina que não soube emitir som ou ter qualquer reação.

                – No entanto, – continuou João, agora sem conter as lágrimas – quando ela me viu naquele barco a esperando para um piquenique, lembrou do pai de seu bebê e de como ele havia rejeitado assumir o filho. Foi quando ela decidiu que o cara do barco – João acenou para si mesmo de forma brusca – seria um pai melhor.

                  – Por isso você foi embora… Pois eu não sou sua filha. – Valentina não continha as lágrimas e nem mesmo a raiva em sua voz ao saber a verdade.

             – Não, Valentina! Eu fui embora porque eu sabia que contar para você era o caminho certo, mas eu morria de medo de ver seu olhar para mim, como se olhasse alguém estranho, como você está fazendo agora… – João fitava a filha com uma dor evidente no semblante. – Eu adiei o máximo que pude, mas não podia mais fazer isso conosco. Por isso você veio passar essa final de semana comigo fil… Valentina, porque sua mãe entendeu que depois de tudo o que aconteceu, eu tinha o direito de te contar.

                   João abaixou e continuou a limpar o seu barco.

               – Eu sei que é direito seu buscar o seu verdadeiro pai, recuperar o tempo que perderam… Então sim, o barco é muito importante para mim. Ele me deu você… Se não fosse essa ideia estúpida, quem sabe eu não tivesse sido escolhido para ser seu pai por tanto tempo? É tudo o que eu tenho. – João sorriu em meio a dor e tocou a data gravada no barco.

               “Esse é o novo ângulo. Um pai que deve estar sofrendo horrivelmente por um mês. Que aguentou um relacionamento por tanto tempo por causa de uma filha que não era dele.” Doía em Valentina, mas ver o seu pai naquele estado a quebrou por inteira: “Como deve estar doendo nele.”

                 Valentina pegou um pano velho jogado ao lado do barco e começou a limpá-lo com intensidade.

                    – O que está fazendo, Valentina?

                 – Limpando um barco importante para mim. Afinal de contas, foi ele que me deu você, meu verdadeiro pai.

6 comentários em “O BARCO QUE ME DEU VOCÊ

  1. Stela minha querida …quanta emoção senti ao ler …e confesso que mais emocionada fiquei com o desfecho da história…para mim uma realidade olhar para outro ângulo dar a chance de amar e ser amado …dar a chance de conhecer o universo do outro…creio que suas histórias serão lições de vida para corações feridos …vc é extraordinária!!!te amo minha
    Escritora preferida!!!

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