AS CARTAS QUE NÃO ROUBEI

 

Sofia havia passado a noite desviando de cantadas baratas e mãos bobas, mantendo aquele mesmo doce e leve sorriso no rosto como se nada a abatesse, mas, talvez por dentro, não fosse tão leve assim. Com entusiasmo e educação servira a noite inteira aquele rapaz alto, de pele negra e extremamente concentrado em seu computador. Era raro encontrar um cliente que respeitava o seu espaço e fazia apenas o que todo cliente deveria fazer: o pedido.

Rafael continuava na sua cafeteria favorita que permanecia lotada, passara a noite terminando o projeto que apresentaria no dia seguinte aos chefões de sua empresa. Para acompanhar a cidade que não dorme, Nova Iorque, as portas do estabelecimento nunca fechavam. Rafael correra para lá após o trabalho, assim que soube que no dia seguinte teria a oportunidade da sua vida. Se não fosse pela doce garçonete que lhe abria um sorriso toda vez que abastecia o seu copo de café, talvez tivesse se permitido lamentar pelo fato de que não dormira nem ao menos uma hora antes do trabalho. Ela sorria e ele pensava:

“Se ela aguenta uma noite de trabalho, no meio desses caras, eu aguento. Vai dar certo”.

Já eram quase seis horas da manhã e finalmente Sofia estaria livre para seguir seu rumo, longe dos olhares maliciosos dos clientes da noite. Sempre preferiu trabalhar durante o dia, mas, prestativa como sempre, a doce mulher não pôde negar o pedido do seu patrão.

Rafael estava a um tópico de terminar sua apresentação e a ansiedade já percorria suas veias como uma droga, transmitindo excesso de adrenalina, estresse e nervosismo. Pagou a boa garçonete com uma gorjeta substancial, já que ela o ajudara de certa forma a se manter acordado durante toda a noite, sorrindo de forma leve e incansável. Fechou o computador, tomando cuidado de salvar o seu projeto com segurança e correu para a rua na espera do táxi que já havia chamado.

Seis horas da manhã e a cidade estava frenética, bastava um raio de sol, as vezes nem isso, e as pessoas já andavam pelas ruas distraídas o suficiente para não perceberem a vida ao seu redor. O rapaz correu para a calçada enquanto esperava o táxi que chamara, quando percebeu que a mesma doce garçonete esperava na calçada ao seu lado.

– Noite longa, não é mesmo? – a mulher brincou e sorriu.

“Como ela pode sorrir depois de trabalhar a noite inteira? Só pode ser brincadeira…” Rafael sorriu sem graça tentando esconder o que pensava:

– Queria que tivesse sido mais longa! Poderia ter ajustado a previsão do caixa de… deixa para lá. Assunto muito sério para essa hora da manhã.

Era raro alguém parar e conversar naquela cidade que não para, ainda mais aquele horário da manhã. Rafael estava tão desacostumado a se socializar com as pessoas desde que se mudara do Brasil, há dez anos atrás, que preferiu desviar o olhar, finalizar a conversa por ali e esperar o táxi chegar, o livrando de uma conversa que ele não sabia mais desenrolar.

Para infelicidade do insociável Rafael, assim que o taxi chegou, Sofia se adiantou acreditando que estava livre:

– Bom dia, gostaria de ir até Dover St, perto da Ponte do Brooklyn…

– Desculpe-me senhora, estou procurando pelo… – o taxista checou o nome em um papel. – Sr. Silva.

– Ah sim, claro! Desculpe-me. – Sofia se afastou sorrindo e voltou a olhar a rua, esperando por um carro livre.

Rafael se adiantou, entrou no carro e observou de relance a garçonete que permanecia em pé com sua postura leve e inabalável da noite inteira:

– Eu ouvi você dizer que vai para a Ponte do Brooklyn… – Rafael já começava a se arrepender ao lembrar que não teria liberdade para estudar no carro como previra. Mas tudo bem, ia chegar uma hora antes da apresentação, daria para estudar mais. – Estou indo perto da Times Square, se não se importar de se desviar um pouco do caminho pode seguir de lá. Acredito que acrescentaria dez minutos à sua rota…

– Claro! Boa ideia… – Sofia pulou no carro com energia e seguiu com Rafael, aliviada de finalmente estar indo. – Sou Sofia.

– Rafael. Prazer em conhecê-la.

– O prazer é meu.

E foi isso. Essa foi toda a conversa que tiveram durante o trajeto. Para a surpresa de Rafael, que havia percebido o quanto Sofia era alegre e comunicativa, durante o trajeto a mulher se encostou no vidro do carro e passou a observar cada detalhe da cidade que não dormia. Sorria com os detalhes que percebia, como a adolescente que esqueceu que usava fones de ouvido e cantou na rua, ou o dono de um cachorro que se esforçava para arrastá-lo por todo o caminho. Aparecendo na bolsa de Sofia havia um bolo de cartas cuidadosamente amarradas, o que despertou a curiosidade de Rafael, já que todas haviam retornado ao destinatário sem ao menos serem abertas.

O trânsito estava lento, como sempre é em Nova Iorque, mas isso parecia não afligir a moça, apenas Rafael que ansiava por chegar cedo na empresa. Foi quando o rapaz decidiu aproveitar o trânsito para estudar e acabou derrubando os papéis que carregava: orçamentos, contas e estudos, tudo espalhado no chão do carro. Para ajudar, o trânsito fluiu naquele momento e Rafael pôde ver o prédio espelhado da sua empresa se aproximando. Visivelmente ansioso, o rapaz pagou o taxista, rapidamente recolheu a bagunça que tinha virado suas coisas e saltou do carro. Assim que chegou no prédio parou bruscamente quando se lembrou das boas maneiras que sua mãe havia ensinado, virou-se para trás e disse à Sofia, aproveitando o vidro que havia deixado aberto:

– Tenha um bom dia!

Sofia não respondeu, apenas sorriu com aquele mesmo sorriso leve e doce.

Mas os seus olhos, por um segundo, disseram algo diferente.

Rafael ficou preso naquele olhar que falava com ele destoando de toda a felicidade que Sofia transmitia. Parecia até mesmo serem os olhos de outra pessoa, não combinavam nem mesmo com o rosto da mulher. Como não percebera isso antes?

A ligação do olhar dos dois terminou quando o carro andou a levando finalmente para o seu destino, fazendo Rafael se recompor e correr até sua sala.

O rapaz deixou desabar em cima da mesa todas as coisas que carregava de forma desorganizada em seus braços, e correu para o banheiro colocar sua camisa extra, desodorante e escovar os dentes.

“Minha cara está péssima.” Pensou Rafael, mas logo sorriu e finalizou: “Mas o meu projeto é ótimo.”

E realmente era. O que Rafael não sabia era que sua ideia de investimento havia sido tão brilhante que a reunião seria apenas para confirmar o que seu chefe já havia decidido assim que a ouviu informalmente pela primeira vez.

Logo que se arrumou de forma apresentável, o homem olhou diretamente para a pilha bagunçada em sua mesa com desânimo. Os papéis que usaria na apresentação estavam em pura desordem e ele levaria alguns minutos arrumando antes que pudesse estudar pela última vez antes da apresentação.

“Aquele olhar…” pensou Rafael de forma inesperada. Algo o incomodou naquela cena e continuava a incomodar.

Os papéis já estavam quase todos organizados quando o rapaz percebeu que ali estava o bolo de cartas da garçonete.

– Como isso veio parar aqui? – Rafael exclamou em voz alta, mesmo estando sozinho.

“Não tenho tempo pra me preocupar com isso agora.” Rafael jogou as cartas no sofá de sua sala e passou a andar de um lado para o outro, treinando o seu discurso. Mas então, subitamente um pensamento que tomava conta:

“Aquele olhar…”, Rafael não conseguia esquecê-lo. Esse pensamento surgia, o paralisava e atormentava. “Que sensação esquisita…”

A verdade é que aquele olhar parecia não ter combinado com todo o restante. Aquela mulher sorria, transbordava gentileza e leveza, mas aquele olhar fora tão triste, tão pesado, que a melhor explicação seria que eles não deveriam fazer parte daquele rosto.

“Concentra Rafael! É a oportunidade da sua vida.” O rapaz balançou a cabeça com força enquanto aconselhava a ele mesmo. Mas passava-se um minuto e ele voltava se sentir desconfortável e a fitar as cartas no sofá.

“Melhor checar, vá que seja importante…” conjecturava o rapaz indo em direção às cartas, mas logo voltava pensando em como era errado violar a correspondência alheia.

“Mas e se ela precisar delas? Quem sairia com um bolo de cartas para não usar para nada? Deve ter algum motivo…” mas logo Rafael abortava a ideia e voltava para seus papéis.

O que parecera uma eternidade de indecisão para Rafael, levou na verdade apenas dez minutos para que ele se rendesse. Foi até o sofá, abriu a carta mais antiga e sanou sua curiosidade. E graças a Deus por apenas ter durado dez minutos, ele não sabia o quanto cada minuto era importante.

– Querida vovó… – começou a ler Rafael em voz alta, aliviado por pensar que talvez as cartas não fossem tão importantes assim. A curiosidade o fez continuar:

– Como sinto sua falta! A cada dia penso que a vida sem a senhora não faz sentido algum.

“A vida sem a senhora? Uma frase muito forte para quem só deve estar morando longe…” pensou Rafael.

Sofia passava então a descrever seu dia, dizer sobre as gorjetas que eram poucas e o chefe que não era o dos melhores. Isso intrigou Rafael, já que a sensação era que quem escrevia não era a mesma pessoa feliz e que parecia não ter tantas reclamações sobre a vida.

“Será que essas cartas são mesmo dela?” Rafael correu o olhar até o fim da página onde leu:

– Com amor e eterna saudade, Sofia.

“Eterna saudade? Algo não está certo.” Rafael abriu o notebook e digitou o endereço para o qual as cartas eram enviadas, afinal elas terem voltado sem resposta de uma avó tão amada também não fazia sentido algum. O mistério só aumentou quando constatou que aquele era o endereço de uma floricultura que havia fechado há muito tempo.

“O que está acontecendo?”

Na segunda carta, depois de detalhes sobre a semana e o rapaz que ela gostava, mas que não a percebia, Rafael leu a despedida em voz alta:

– Obrigada pelo tempo que esteve aqui e por tudo o que ouviu. Hoje sei o quanto faz falta ter alguém para me escutar! Quando você se foi levou um pedaço de mim e não tenho alguém que possa ouvir o que sobrou… Sempre te amarei.

Rafael levantou num ímpeto e jogou as cartas no sofá. Não queria admitir, mas no fundo sabia que a aquela doce mulher mandava cartas para a avó que falecera.

“Que horror, essa mulher precisa se tratar.” Passou as mãos na cabeça e no braço de forma instintiva, como se limpasse toda a energia ruim que poderia ter pego das cartas. Foi quando se surpreendeu com a secretária de seu chefe que o observava da porta entreaberta:

– Bom dia Sr. Rafael. Está tudo bem? – perguntou a jovem loira que parecia estar ali tempo o suficiente para ter visto a cena do descarrego.

Sem graça, Rafael tentou explicar:

– Bom dia! Eu peguei umas cartas por engano da pessoa que dividiu o táxi comigo. Já tinha percebido algo estranho… Mas quando comecei a ler as cartas, meu Deus! Que macabro!

– Você está violando correspondência alheia? Que isso Rafael… – a jovem brincou.

– Sério que de tudo o que eu falei é só essa parte que te preocupa? E a parte DELA ESCREVER PARA UMA PESSOA MORTA?

– Bem… eu lembro que quando meu pai morreu, no meu diário eu escrevia como se fosse para ele. Aliviava a falta…

“Faz sentido.” Pensou Rafael.

– Pode ser… Agora escrever, colocar em um envelope, endereço, selo e mandar. Esquisito, não? – Rafael sentou-se no sofá novamente, como se se reconciliasse com as cartas “não tão macabras” assim. – Mas como posso te ajudar?

– Ah sim! Sua reunião foi adiada em trinta minutos.

“Mais meia hora, o que daria quase uma hora e meia de preparação! Graças a Deus.”

Assim que a secretária fechou a porta, Rafael mergulhou novamente no mundo das cartas ainda mais intrigado. A princípio elas pareciam comuns, tirando o fato de que eram escritas para alguém que já havia morrido, mas algumas frases lhe chamavam a atenção como:

“É possível sentir o silêncio no meio de um milhão de pessoas…”

“As pessoas andam cada vez mais com as cabeças baixas, como poderiam ver que estou aqui?”

Algumas frases pareciam bem-humoradas, mas ainda escondiam algo intrigante:

“Em outra vida quero ser um celular.” Rafael não conteve o sorriso vazio ao perceber que provavelmente olhava mais as pessoas por fotos do que pessoalmente.

Como Sofia conseguiu esconder toda a tristeza que sentia? Como manteve um sorriso no rosto que não representava a tristeza do seu olhar? Carta após carta, Rafael passava a ver uma Sofia diferente. Provavelmente, desde o colegial se sentia invisível para os amigos e para o mundo. Constatou que seus relacionamentos anteriores eram frustrados e não se sentia como prioridade para os seus amigos. Aparentemente, possuía uma vida social normal, mencionava que costumava sair com amigos, com sua família e tinha um bom relacionamento no trabalho, mas sentia falta das conversas reais e de pessoas realmente interessadas nela. A questão talvez não fosse apenas o fato de que Sofia escondia o que sentia, mas também a falta de interesse de quem a rodeava.

– Engraçado como as pessoas me olham, mas não me enxergam. Você me enxergava, vovó. – Leu Rafael em voz alta. Continuou:

– Por quê dizem “bom dia” e perguntam “como você está?”, quando na verdade não querem mesmo saber como eu estou? – Rafael suspirou com essa parte da carta. Pelo menos ele não havia feito isso aquela manhã, não estava interessado em como ela estava e por isso não perguntou, mas no fim, parecia ser ruim tanto quanto tivesse perguntado.

“Triste, muito triste saber que eu não queria ter uma conversa com alguém que realmente precisava de uma conversa.”

Absorto em seus pensamentos, Rafael fitou a pilha de papéis que devia estar estudando e pensou:

“Ok, mais uma. A última.” Rafael folheou com cuidado as cartas, já que agora entendia que carregava sentimentos em suas mãos, parou na última carta e decidiu lê-la, já que o envelope era florido, alegre e até mesmo o endereço havia sido escrito com cores coloridas:

“Essa parece ser muito mais feliz, quem sabe os desabafos a ajudaram!”. – Rafael sorria enquanto violava a última carta.

“Querida vovó,

Tenho escrito cartas e mais cartas tentando desabafar e aliviar a falta que eu tenho de que alguém realmente me escute e me entenda. Mas hoje entendi que não preciso mais dessas cartas! Acredito que vivi uma boa vida até aqui, tenho trabalho, amigos, família! E isso é o suficiente. Já vivi o suficiente.

Com amor e logo não mais com tanta saudade, Sofia.”

Rafael levantou do sofá num pulo. Seus olhos estavam arregalados e sua respiração ficou pesada. Enfiou algumas cartas no bolso da calça, passou correndo pela secretária em direção ao elevador e foi quando lembrou que não estava com o seu carro.

O que ele iria fazer? Colocou o trajeto no mapa e viu que as ruas estavam paradas.

“Ótimo.” Pensou Rafael de forma sarcástica, suas mãos tremiam enquanto ele tentava pensar em uma solução, prostrado na frente do elevador. “Ir de táxi levaria uma hora por causa do tráfego… Não tenho uma hora.”

– Cara, seu projeto deve estar ótimo porque você está horrível. Deve ter passado mesmo a noite em claro…

– Tom, cara! – Rafael desabou as mãos com força nos ombros do amigo e o encarou com os olhos arregalados.

– Você está me assustando…

– Você vem de bike! É ISSO! – os olhos de Rafael brilhavam com um fio de esperança.

– Que novidade… Você sabe disso faz tempo…

– Estou pegando sua bike. – O elevador fez um estalo avisando que havia chegado, e Rafael pulou para dentro dele.

– Cara você está louco? Se sair agora nessa loucura de Nova Iorque você não chega pra apres… – O bom amigo tentou alertá-lo, mas a porta havia fechado com um Rafael frenético dentro do elevador. Um Rafael que nem se lembrava mais da apresentação que mudaria sua vida, porque era mais importante mudar outra vida.

Sabe-se que em vários países, como o Japão por exemplo, é comum se ver homens de terno, gravata e sapato social em sua bicicleta indo trabalhar, mas garanto que ver aquele homem alto como um jogador de basquete em uma bicicleta pequena, vestido formalmente, suando como se estivesse em uma maratona e com o olhar de desespero era realmente algo raro de se ver.

Seria um trajeto de no mínimo vinte minutos e a cada pedalada Rafael agradecia por ter escolhido a pequena bicicleta, já que o trânsito estava todo parado devido a reformas.

“Ela deve ter demorado também para chegar… Espero que tenha ficado no tráfego por muito tempo.”

Rafael queria estar errado, pedia a Deus para estar… Mas não estava. Assim que chegou na Ponte do Brooklyn viu de longe aquela doce mulher rodeada por policiais que mantinham distância, com medo de que ela fizesse o que realmente havia prometido:

Pular.

Muitas pessoas estavam a observar, confabulando sobre o porquê ela queria saltar:

– Pobre menina, é tão linda… – disse uma senhora.

– Essas crianças de hoje são ingratas, possuem tudo e ainda estão insatisfeitas. – esbravejou outro.

– Eu acho que ela pula, está com cara de que vai pular. – Outra mulher opinou.

E realmente estava. Agora seu rosto e seu corpo mostravam o que antes só os seus olhos deixavam transparecer. Pendurada nas grades da ponte, do lado de fora, Sofia se balançava olhando para o seu destino.

Rafael saltou da bicicleta e tentou passar pela multidão que se fechava a sua frente. Enquanto caminhava com dificuldade, visualizava a cena de Sofia no carro, com o rosto colado na janela aproveitando cada detalhe de seus últimos momentos. Lembrou do olhar dela para ele, aquele olhar que o incomodou e paralisou. Algumas das cartas estavam no seu bolso, ele as tocou e ficou feliz por não as ter perdido no meio do caminho.

E foi quando ele conseguiu se aproximar. Alguns policiais tentaram o impedir, mas ele gritou:

– SOFIA!

Percebendo que ele a conhecia, os policiais tentaram o convencer de que seria melhor que ele aguardasse já que um profissional estava a caminho, mas ele disse:

– Deixe-me tentar. Esse profissional não está aqui, não é mesmo? Confie em mim, eu a conheço, ela vai pular e pode ser que não dê tempo dele chegar. As ruas estão paradas…

O policial que era o responsável encarou aquele homem alto, negro, bem vestido, mas desesperado e ofegante por causa do trajeto e entendeu que talvez, entre todos os que estavam ali, ele fosse o mais interessado em mantê-la viva, já que até então nenhum parente havia aparecido. Eles precisavam tentar.

Aliviado por o deixarem passar, Rafael se aproximou de Sofia lentamente. Sua vontade era correr e agarrá-la antes que pulasse, mas ele havia sido orientado pelos policias para não fazer nenhum movimento brusco ou invasivo, isso poderia incentivá-la a pular.

– Sofia, lembra de mim? – as palavras saíram de uma boca trêmula, o suor escorria pelo seu rosto.

A moça o fitou de forma curiosa:

– Como não lembraria da última pessoa que conheci? – respondeu docemente, como havia feito durante toda a noite em que o atendeu na cafeteria. – Não faço ideia de como chegou até aqui tão rápido, levei quase um século para chegar… – ela sorriu como se não estivesse prestes a se atirar da ponte.

Rafael deu mais um passo em sua direção e Sofia disse de forma firme:

– Não se aproxime.

– Tudo bem… – Rafael parou e resolveu ganhar tempo para que o profissional chegasse. – Só queria te mostrar como cheguei aqui tão rápido! – disse tirando as cartas do bolso.

Sofia arregalou os olhos e disse:

– Você roubou minhas cartas?

– Eu juro que não roubei… – Rafael continuou:

– Eu sentia que tinha que ler. Aquele último olhar que você me deu no carro… Estava me dizendo algo. E então eu li tudo o que escreveu, aquela última frase dizendo “Já vivi o suficiente.”, tudo ficou tão claro! Você estava vindo pra Ponte do Brooklyn e…

– Você violou minhas cartas! – Sofia exclamou.

– Sério que de tudo o que eu disse é isso o que mais importa? Sério? EU NÃO ROUBEI suas cartas e eu tive que ler… Eu TIVE que ler. Você não pode pular, Sofia…

– E porquê não? – aqueles olhos doces e tristes o encararam como se pela última vez. Naquele momento Rafael soube que não existiam muitas respostas certas para que ela não pulasse no próximo minuto.

Ele a olhou fundo nos olhos, o que não fazia com alguém há muito tempo, já que ultimamente as pessoas não costumam mais se olhar, deu um passo devagar:

– Sofia, você pode pular, mas não precisa.

Ele deu mais um passo com cuidado, ainda a olhando intensamente, tentando nem mesmo piscar. Sofia retribuía aquele olhar intenso, quase como se estivesse hipnotizada por ele.

– Você não precisa porque não é mais invisível, não para mim. – Rafael manteve o olhar fito no dela. Deu mais alguns passos, estendeu a mão com firmeza e disse:

– Eu vejo você! – Uma lágrima desobediente correu no rosto de Rafael, se misturando com o suor da sua pele negra. Mas seus olhos se mantinham firmes e convictos nos olhos dela, sua mão ainda estava estendida.

E foi quando de repente aconteceu. Rafael segurou a respiração, pôde ouvir o seu coração que disparou quando…

Ele sentiu a pequena mão de Sofia nas suas.

 

Crédito foto: Urban — Taxi Cabs Free Photo By 

 

2 comentários em “AS CARTAS QUE NÃO ROUBEI

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